sexta-feira, 4 de maio de 2018

O DISCURSO DO DEFUNTO

O DISCURSO DO DEFUNTO

Benoni Conrado e Zé Maria

Meu sinhô, me arrepare

Eu ando mêi disgostôso

Não é por minha pobreza

Que eu nunca fui orguiôso

É porque tenho sofrido

Por via d’eu sê medroso


Um dia, me arresorvi

Saí lá donde eu vivia

Pra dá u’as riviravorta

Por onde eu não cunhecia

Pensei logo cá cumigo:

Eu sô um rapaz sortêro

Ta certo, sô mêi feioso

Não sei lê nem tem dinhêro

Mas quem sabe se eu saindo

Dos diabo dessas biboca

Num arranjo inté u’a nêga

Pra tirá minhas caroca


Botei as roupa num saco

Às quatro da madrugada

Me arrecumendei aos santo

E prantei os pé na estrada

Só sei que dessa isquipada

Eu andei uns quinze dia

Mas só no rumo da venta

Sem sabê pra donde ia


Inté que um dia, de tarde

Eu atravessei um rio

Num ia pensando em medo

Mas me deu uns arrepio

Aí foi que eu ispiêi

Achei tudo assim deserto

Cunhecí que ali num tinha

Uma só casa por perto


Por via de num tê casa

Pro mode eu apernoitá

Vi u’a arve infoiada

Maginei: Se eu me atrepá

Sei que é mêi desajeitôso

Mas dá pra me agasaiá


Subi na arve e fiquei

Ta certo que eu não drumia

Mas tava bem iscundido

Porque os gái me cobria

Se passasse argum viviente

De jeito nenhum me via


Mas meu sinhô, quando foi

Mais ou menos doze hora

Eu ouvi uns alarido

Cuma quem canta ou quem chora

Eu arregalei os oi

E avistei u’a multidão

De gente com as voz rouca

Tudo de vela na mão


Eu maginei: é as alma

Fazendo uma procissão

Na frente, avistei um pade

Cum a image do Sinhô

Um sacristão com água benta

Mas ninguém trazia andô


Nesta hora eu respirei

Fiquei todo arripiado

Dispois notei que eles vinham

Caminhando pro meu lado

Bateu-me um medo tão grande

Que eu quase inté me afroxava


Quando eu vi que uns apontavam

Pra dita arve que eu tava

Quando chegaram debaixo

Era dez pessoas ou mais

Uns preguntaram pros outro:

E agora, o que é que se faz?

Um respondeu: é subir

Pra ir buscar o rapaz


Quando eu vi essas palavra

Peguei logo a me tremê

Mas mermo assim: maginei:

Eu num tenho que perdê

Respondi, batendo os dente:

Dêxe, eu mermo vou descê...


Ah, meu sinhô, me acredite

Eu falei mêi arrastado

Mas pode crê, nessa hora

Foi fê o ispatifado

O pade se assombrou

Jogou o santo no chão

O pobre do sacristão

No pade se pindurou

Uma veia inda gritou:

Joga água benta pra trás

Cada qual corria mais

Soltaram a image do Cristo

Parece que tinham visto

Careta do satanás


Eu, vendo aquele istrupiço

Pulei ligêro no chão

Saí correndo também

Mas em outra direção

Na frente eu parei pensando:

Ora essa, tava ruim

Era eu com medo deles

Eles com medo de mim


Dispois que o dia amanheceu

Eu vortei no mesmo canto

Pra vê qual era o motivo

Daquele tão grande espanto

Pois né que de longe eu vi

Um home dipindurado

Bem pertinho donde eu tava

Tinha morrido enforcado


Nessa hora eu compreendi

Qual era o sinificado

O povo vinha buscá

O home suicidado

E quando viram eu falá

Dizendo que ia descer

Pensaram que era o defunto

Danaram a égua a correr


Quando eu cheguei na cidade

Ninguém via outro assunto

Todo mundo só falava

No discurso do defunto

As históra sempre aumenta

Uns dizia: é verdade

O morto falou nas guerra

Nos viço e nas vaidade

No mundo que se arrivira

E quem pensá que é mentira

É só preguntá ao pade


Eu inda fui na eguage

De dizê o que passô

Mas fui descreditado

Ninguém me acreditou

Uns cabôco inda disseram

Esse cabra é mentiroso

Quer se metê nas históra

Pra dizê que é corajoso

Vamos dar-lhe umas esfrega

Quando eu vi esses cuchicho

Lasquei os pé na carrêra

Mas dispois fiz por capricho

Maginando no castigo

Nunca mais contei históra

Voltei prás minha biboca

Porque lá tô sem perigo

E quem tiver qualquer segredo

Pode me contá sem medo

Que eu me lasco, mas não digo

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